Em conversa informal com os colaboradores do Instituto Ekos Brasil, o indigenista Sydney Possuelo, fala sobre as perspectivas e os desafios atuais – alguns não tão atuais assim – dos povos indígenas.
“Muitas vezes nós, estando abrigados nas nossas cidades e construções, neste nicho que criamos, esquecemos que os indígenas também são nossos irmãos, que precisamos também assistir a eles”. Essas palavras de alerta são de Sydney Possuelo, brasileiro indigenista, sertanista, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e considerado a maior autoridade com relação aos povos indígenas isolados do país.
Sua história com a causa começa cedo. Desde pequeno se apaixonou pela aventura, pela natureza. A pesca, caça, a história do Brasil e propriamente a questão indígena, especialmente voltada aos povos isolados, guerreiros e valentes, sempre lhe chamaram muito atenção. “Acredito que há certas características que nos ajudam a seguir no nosso destino”, declara.
Foi ainda muito jovem que procurou os irmãos Villas-Bôas, os sertanistas mais famosos do país. “Eu percebi que era isso que eu buscava. Então, segui este destino que eu havia escolhido”.
O sonho na prática
Naquela época, não havia escritórios da FUNAI. Como seu zelo maior sempre foi sob a luta dos Direitos Humanos, Possuelo trabalhou muito perto de comunidades indígenas isoladas, para defendê-las e apoiá-las.
De acordo com ele, as histórias vividas na mata são infinitas. E são fortes e sofridas, da maneira como realmente é a vida dos indígenas, que necessitam lutar por suas vidas, por seus direitos básicos e por suas terras cotidianamente. “Eu, sozinho, junto dos Caiapós principalmente, enfrentei problemas de saúde, epidemias, situações que foram muito, muito difíceis”, relembra.
Descreve que uma vez estava no posto e foi chamado com pressa por dois jovens que carregavam uma mulher em uma rede. “Quando eu abri a rede, ela estava dando à luz e tinha apenas uma mãozinha saindo da mulher. Fomos então para o ambulatório e tentamos pensar em como faríamos para tirar a criança dali. Pensamos em empurrar o braço para dentro e tentamos encaixar a cabeça da criança no local exato de parir. Eu estava ali de calção e o suor caía em cima da barriga da mãe. Já tinha colocado soro e penicilina para ela, que já estava muito fraca. Já era tarde demais para o bebê. Descobrimos horas depois que ele já estava morto há dois dias”, narra o indigenista.
“Depois foi a segunda parte”, recupera da memória. Pegaram um pequeno avião para levar a mãe ao hospital em Goiânia, mas nenhum aceitava tratá-la. Por fim, entrou no hospital, repousou a mulher em uma maca e disse que não sairia dali até que ela fosse atendida.
“Não é uma história bonita, mas que reflete a vida, as angústias, tristezas, dores, ferimentos dos indígenas. Suas histórias com os brancos não são belas. Até hoje essas relações são muito difíceis”, evidencia.
Guerras sob a mata
Apesar de governantes brasileiros já terem assinado diferentes tratados internacionais visando a conservação do meio ambiente e da cultura dos povos indígenas, são poucos os que de fato são colocados em prática. Isso porque a prioridade do Estado é aplicar o regimento interno, que muitas das vezes vai contra os princípios sustentáveis.
O sertanista é decisivo ao dizer que o Estado brasileiro nunca protegeu os povos indígenas e nunca teve uma ação de defendê-los. Segundo ele, houve governos que cuidaram menos ou mais dessas ações, entretanto, “o eterno conflito dos que disputavam a terra ainda existe”.
“Devemos entregar os direitos que são deles. Nós devemos olhar com o coração, pois o governo não tem nenhuma decência com os povos e penso que, trazendo tudo isso para os dias atuais, vemos que o tempo não é favorável aos indígenas. Vemos que há um sentimento nacional embutido de que índio é atraso, é sujo, contra o desenvolvimento, contra o progresso”, discorre Possuelo.
E completa: “Eu diria que nunca na história do Brasil nós vivemos um momento tão perigoso para os povos indígenas”.
A história é viva, assim como a cultura
A guerra contra as comunidades indígenas não é formal ou declarada. Aprende-se na escola sobre a chegada dos europeus às Américas e sobre a perversidade das ações dirigidas aos que habitavam esta terra. “Sempre houve uma luta por direitos e por terras dos dois lados. A luta dos brancos foi mais no início, inventando normas, carimbos. Chegamos aqui e dissemos ‘olha, você que está aqui há mil anos, não é mais dono desta terra’, porque o índio não tinha as coisas que nós inventamos. Não tinha carimbo, não tinha papel. Não precisa ser jurista para saber que isso está errado”, conta.
Se o arcabouço social e jurídico não favorece sua cultura, as comunidades precisam lutar por seus direitos. Graças a chegada da internet nas aldeias, principalmente os jovens têm tomado o seu devido espaço nas redes sociais, como influenciadores digitais que divulgam informações sobre sua cultura e seu cotidiano; além de ocupar espaços nas universidades, nos congressos e, principalmente, na raiz do problema: na política.
Mas Possuelo acredita que além de pressionarmos ou cobrarmos pelos povos indígenas, a grande mudança tem que partir da população branca. Ele defende que os índios isolados têm o direito de permanecerem afastados da civilização – se assim o quiserem – para “não viverem as nossas angústias”.
“No final de todas as contas, o que estamos fazendo das nossas vidas? Estamos buscando ser felizes. Neste sentido, eles são muito melhores do que nós. Não existe essa vaidade absurda. Há pessoas que acham que isso é atraso, mas não existem sociedades ultrapassadas. Existem sociedades que seguem caminhos diferentes de nós, eles vivem no conforto, não acumulam nada, porque acreditam que a natureza que foi generosa para seus avós e bisavós vai continuar a ser generosa com eles”, diz.
Saúde e longa vida aos povos indígenas
Sem dúvidas, Sydney Possuelo é um exemplo de persistência, luta, empatia, humildade e consciência. “Os índios não desapareceram, seja há 30 ou 300 mil anos. E não vão desaparecer. Serão cada vez mais incorporados. Se os isolados precisam de proteção, os que estão em contato conosco precisam de nós, de saúde, de educação. O futuro precisa de nós, pois isso tudo é reflexo das nossas ações. Os índios não irão desaparecer, serão minoria, mas estarão presentes e obtendo dessa nação seus direitos. Saúde e longa vida aos povos indígenas”, conclui.