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“A ciência é sim uma atividade para as mulheres”

Cibele Lana 08 mar 2021

“A ciência é sim uma atividade para as mulheres”

O Instituto Ekos entrevista a doutora e pesquisadora científica do Museu Biológico do Instituto Butantan, Erika Hingst-Zaher, que apresenta sua visão sobre a importância do centro de pesquisa para além das vacinas e incentiva o merecido espaço das mulheres na ciência. 

Quem não conhecia, certamente ouviu falar sobre o Instituto Butantan recentemente. Esse centro de pesquisa biológica, que ganhou o nome por estar localizado no bairro do Butantã, zona oeste da cidade de São Paulo, tem recebido grandes destaques na mídia nacional pelo desenvolvimento da vacina contra a Covid-19. Mas, você conhece as atividades do centro de pesquisa para além da vacina? 

O Instituto Butantã e o Ekos Brasil são parceiros de longa data. Para nos contar um pouco sobre o histórico dessa parceria e, principalmente, para nos atualizar sobre a relevância desse importante polo de ciência, vamos entrevistar a pesquisadora científica Erika Hingst-Zaher, do Museu Biológico do Instituto Butantan. Para ela, “a ciência pode mudar o mundo”.

Nos conte um pouco sobre a missão do Instituto Butantan. Quais são seus objetivos e como se organiza?

Erika Hingst-Zaher – O Instituto Butantan é uma das mais antigas e reconhecidas instituições de pesquisa do Brasil, criada em 1900 para combater a peste bubônica que então chegava ao país. Além da produção bem-sucedida do soro antipestoso, o primeiro diretor do Instituto, o médico Vital Brazil, teve papel de destaque no debate internacional sobre o tratamento de acidentes ofídicos. 

Na época, defendia-se que apenas um soro seria suficiente para tratar todos os tipos de picadas de cobra, entretanto Brazil, que conduzia as pesquisas sobre a produção do soro e campanhas junto ao público, para evitar os acidentes, propunha uma ideia diferente: para diferentes grupos de serpentes e tipos de veneno seriam necessários tipos diferentes de soros, o que hoje sabemos que é fundamental

Hoje, com 120 anos de existência, o Butantan é organizado em três grandes áreas: pesquisa, produção e área cultural. A pesquisa feita aqui é muito diversa, indo desde a biologia animal, venenos, epidemiologia, imunologia, identificação de genes e proteínas e muitas outras áreas. Na produção de vacinas e imunobiológicos, somos responsáveis por metade da produção nacional de vacinas e praticamente todos os soros distribuídos pelo SUS

O Instituto atua também no ensino, através de sua pós-graduação e formação de alunos de diversas áreas, e mantém uma forte comunicação com o público, através de seu papel que vai além da pesquisa: a educação e a divulgação científica. Um grande número de escolas e visitantes espontâneos visitam os museus e frequentam o parque que abriga uma floresta urbana com rica fauna e vegetação, na zona oeste de São Paulo. 

Como você avalia a importância do Instituto Butantan no desenvolvimento da ciência no Brasil?

Erika Hingst-Zaher – A criação dos institutos de pesquisa foi uma tendência mundial no final do século XIX, quando os governos e parcelas mais esclarecidas da sociedade se deram conta de que o conhecimento e o controle de doenças eram fundamentais. O tipo de pesquisa realizada nas instituições como o Pasteur, em Paris, e o Instituto Ingês de medicina Preventiva, em Londres, divergia das universidades que já existiam na época por seus resultados mais rápidos e aplicados. Nessa época, no Brasil, especialmente em São Paulo, foram organizados institutos públicos de pesquisa nas áreas de saúde, agricultura e meio ambiente, como os Institutos Butantan, Pasteur, Biológico, Botânica, Florestal e Geológico. 

Desde então, os governantes paulistas com visão mais ampla, bem como a FAPESP, investiram na consolidação deste sistema público de Ciência, Tecnologia e Inovação que é único no Brasil. O Instituto Butantan, vinculado à secretaria do estado de Saúde, é parte desta estrutura que faz com que São Paulo seja o estado que mais produz ciência no Brasil, e os pesquisadores que trabalham aqui e nos outros institutos são parte de uma carreira especial, a de pesquisador científico.  

Quais são os projetos do seu departamento? E como é a sua rotina no Instituto Butantan?

Erika Hingst-Zaher – Eu sou um dos quatro pesquisadores do Museu Biológico, o museu mais antigo do Butantan e único a apresentar cobras vivas. Os pesquisadores, alunos e funcionários do museu combinam dois tipos de atividade: a pesquisa com animais e a divulgação científica. Os outros pesquisadores estudam principalmente serpentes, através de trabalhos de campo e dos animais mantidos em cativeiro.

Minha formação como bióloga, desde a graduação até o meu doutorado, se deu especialmente nas áreas de zoologia e ecologia de vertebrados, e ainda na conservação do meio ambiente, o que me permitiu uma diversificação de projetos que atende a mais de uma área de pesquisa no Instituto Butantan. Os dois principais no momento são com evolução e diversificação de veneno nas serpentes, e de vigilância epidemiológica para patógenos como o coronavírus e o vírus da influenza em aves e morcegos. 

No primeiro, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pela National Science Foundation (NSF), trabalho junto com outros pesquisadores do instituto e também de universidades norte-americanas estudando as serpentes e suas glândulas, e a composição do veneno, e ainda na parte de comunicação para o público dos resultados que obtemos. Poucas pessoas já pararam para pensar que o veneno das serpentes tem o propósito para estes animais de capturar sua presa (e não de picar pessoas), ele surgiu e se diversificou para isso. E ainda menos pessoas sabem que o veneno é um coquetel de proteínas que varia muito, mesmo dentro da mesma espécie de serpentes e até em uma mesma cobra ao longo de sua vida. 

No segundo, chamado de Projeto Rede de Vigilância de Vírus (PREVIR), juntamente com pesquisadores da USP e de outras universidades e institutos de pesquisa do Brasil inteiro, formamos uma rede que monitora constantemente a presença de vírus em aves e morcegos, que podem vir a causar problemas de saúde ou econômicos. Esse projeto financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) começou no final de 2020 e, através dos observatórios e de pontos de coleta em locais estratégicos do país, como a Amazônia e a Floresta Atlântica, procura detectar os problemas antes que eles surjam, para que possamos estar prontos e produzir vacinas antes que novos vírus atinjam populações humanas.

O problema com os vírus e com outros patógenos que podem ser prejudiciais para nós, por incrível que pareça, está ligado à conservação do meio ambiente. O desmatamento e a perda de hábitats levam ao desaparecimento de algumas espécies e ao rearranjo na estrutura das comunidades de animais silvestres que, juntamente com outros fatores, como o contato com animais domésticos ou o consumo de caça, possibilitam que as epidemias surjam entre nós. 

Essa abordagem que junta a saúde humana e a conservação dos ecossistemas é relativamente recente, embora seja intuitiva – afinal, como cuidar da saúde humana sem olhar para a saúde do planeta, para a água que bebemos, o ar que respiramos, a origem dos nossos alimentos e a forma como produzimos e a nossa relação com a natureza?. A Organização Mundial de Saúde (OMS) chama essa abordagem de “One Health”, ou saúde única

Além destas e de outras linhas de pesquisa que combinam a saúde humana e a saúde e conservação do meio ambiente, juntamente com meus alunos e colegas pesquisadores, também produzo material de divulgação científica, exposições e atividades para o público do Butantan. 

Ainda durante meu pós-doutorado no Museu de Zoologia da USP, me preocupava com as questões relacionadas ao meio ambiente e o que os cientistas, assim como eu, sabiam que poderia acontecer com a biodiversidade. Só que este é um problema de comunicação: muitas vezes, os cientistas deixam de comunicar para o público descobertas importantes que podem fazer a diferença para nosso bem-estar e para a sobrevivência do planeta. 

Tendo isso em mente, fiz uma especialização em comunicação científica na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), o que me deu uma base para atuar no Museu Biológico na parte de divulgação da ciência. Essa parte do meu trabalho, na qual desenvolvo materiais e atividades para o público na área de biodiversidade, é extremamente gratificante, e envolve não apenas exposições e filmes, mas também atividades como caminhadas para a observação da fauna e da flora na floresta do Instituto. 

Você já liderou equipes e desenvolveu diversos projetos em parceria com o Instituto Ekos. Quais desses projetos foram os mais relevantes e quais os resultados?

Erika Hingst-Zaher – Trabalho em colaboração com o Instituto Ekos desde 2005 elaborando planos de manejo de áreas protegidas, como parques estaduais e estações ecológicas, e propondo a criação de novas áreas destinadas à conservação. Foram sempre trabalhos extremamente enriquecedores, com o convívio com pesquisadores de outras áreas e com a equipe do Ekos. 

De todos estes trabalhos, aquele do qual mais me orgulho, e que me traz imensa felicidade foi a proposta para a WWF de criação de uma grande área protegida na restinga de Bertioga, atualmente o Parque Estadual da Restinga de Bertioga. Esta área é extremamente importante e única em sua biodiversidade, já que é uma faixa litorânea de vegetação com origem e formação diferente do restante da Floresta Atlântica e sofria grande pressão para desenvolvimento de empreendimentos imobiliários e turismo. 

Com isso protegemos diversas espécies ameaçadas e um patrimônio único.  

Quais são os desafios que você, como pesquisadora científica, enfrenta hoje no Brasil?

Erika Hingst-Zaher – Sem dúvida o maior desafio é o sucateamento da ciência e a falta de apoio dos governantes às pesquisas de longa duração e à manutenção da estrutura, universidades e institutos onde a pesquisa é feita no Brasil. A carreira de pesquisadora científica não tem mais o prestígio e o apoio que tinha no passado. Vejo meus colegas se aposentando, enquanto não se abrem novas vagas para substituí-los ou para continuarem suas linhas de pesquisa. 

O mesmo se passa com os institutos de pesquisa, que até então foram um dos grandes diferenciais para a produção científica no estado. As incertezas sobre financiamento e bolsas para alunos de pós-graduação desenvolverem seus projetos afasta muitos jovens promissores da possibilidade de seguir uma carreira acadêmica na ciência. 

Mas não quero falar apenas das coisas negativas. Assisti no decorrer do último ano um interesse renovado da sociedade, em geral nos cientistas e na ciência que é feita no Brasil, e espero que isso faça com que os governos, em vários níveis, voltem seus olhos também à importância de avançarmos com a ciência pura e aplicada e para sua importância à soberania nacional, a exemplo do que se faz em países desenvolvidos. 

Que mensagem você daria aos novos pesquisadores que estão iniciando carreira no país?

Erika Hingst-Zaher – Neste mês de março, quando pensamos mais nas meninas e nas mulheres, queria deixar minha mensagem especialmente para elas que, frequentemente quando estão crescendo, acreditam menos em si mesmas. Isso porque quando chegamos na pós-graduação ou no exercício da profissão na área acadêmica, vemos menos mulheres presentes em bancas e congressos, ficamos menos à vontade para fazer perguntas após palestras e apresentações, recebemos menos convites para reuniões científicas e bancas de pós-graduação e concursos, e levamos a responsabilidade maior na dupla jornada com os cuidados da casa, dos filhos e da família. 

Queria dizer para todas que a ciência é sim uma atividade para as mulheres e que temos a capacidade de seguir carreira em STEM (termo em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Além disso, enquanto cientistas, frequentemente orientamos alunos de forma melhor, com mais suporte emocional, além de profissional

Tenho a sorte de ao longo da minha formação ter tido colegas mulheres na ciência sensacionais, que me mostraram que podemos fazer muito além e melhor. No Instituto Butantan, as mulheres têm uma posição de destaque na coordenação e na condução de pesquisa de ponta. Tenho também a sorte de ter a inspiração de zoólogas brasileiras ou radicadas no Brasil, como Emilie Snethlage e Bertha Lutz, que foram expoentes em suas áreas e lutaram pelo direito das mulheres em várias frentes, abrindo caminho para quem veio depois. 

Minha mensagem é para as meninas e mulheres que gostariam de fazer pesquisa, para que não desistam se seus sonhos, de sua vontade. Apesar de todos os desafios, muitos dos quais mencionei aqui, a ciência pode nos estimular e nos mover para diante. A ciência pode mudar o mundo. 

Leia também: Especial Dia Mundial da Agricultura Johanna Döbereiner: a mulher que transformou a agricultura brasileira. 

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